sexta-feira, 16 de março de 2018

MEU PREFÁCIO AO LIVRO "O FIM DA FÍSICA" DE STEPHEN HAWKING (GRADIVA, 1993)


Republico aqui este meu prefácio de há 25 anos a "O Fim da Física", numa homenagem ao grande físico e divulgador que acaba de nos deixar:

Breve História do Tempo, o livro do físico inglês Stephen Hawking, publicado originalmente em 1988 e editado em Portugal pela Gradiva no mesmo ano, conheceu um êxito inusitado. Em todo o mundo devem-se ter vendido até à data cerca de 6 milhões de exemplares, uma circulação surpreendente para um livro de divulgação da física moderna e cuja compreensão por um leigo não é de forma alguma fácil (descansem, leitores que leram e não entenderam: é um físico que vos diz isto!). A carreira mediática de Hawking continuou com um documentário de longa metragem, realizado por Errol Morris, que, apesar de ter entrado com sucesso no circuito comercial dos Estados Unidos e de ter passado nas televisões de vários países, continua a ser desconhecido entre nós. Finalmente, Hawking voltou recentemente ao mercado livreiro com o título sugestivo Buracos Negros e Universos Bebés, cuja edição em língua portuguesa se aguarda.

A que se deve o êxito de Breve História do Tempo, que a todos terá surpreendido? A um facto que excede a física e só a psicologia e a sociologia poderão explicar: acontece que Hawking é um deficiente físico de alto grau, tolhido como está por uma doença do sistema nervoso rara e progressiva, conhecida por doença de Gehrig. Toda a gente correu a comprar o livro do cientista inválido, um pouco como se compram os cartões de boas--festas com pinturas feitas com os pés por deficientes. A «pintura» de Hawking pretendia representar o universo todo desde o primeiro momento até ao possível final dos tempos e era feita sem pés, praticamente sem mãos (basta-lhe um dedo premindo um botão de um computador especial), e, portanto, apenas com a cabeça. A imprensa, de forma mais ou menos sensacionalista, ajudou à promoção do cientista-fenómeno: alguns jornais falaram do cérebro que, sem corpo, conseguia compreender o universo todo («Deus ao alcance do pensamento puro») e um magazine internacional colocava a estrela Hawking perante um cenário de estrelas a chover à volta. Tudo junto deu os tais 6 milhões de exemplares, a maior parte dos quais aguardam de certeza na estante a ocasião de serem lidos (tente, caro leitor, reiniciar a leitura interrompida; este físico diz-lhe que o esforço vale a pena!). Mesmo que o difícil nome de Hawking não tenha sido fixado, ficou a história do «génio em cadeira de rodas», que, confrontado com a proximidade do seu fim individual, quer, com alguma urgência, indagar como foi o princípio e qual será o fim do cosmo.

É para Hawking, de certa forma, um infortúnio a sorte editorial que conheceu. Ficou conhecido mais como um deficiente físico do que como o eficiente físico que é. E, mesmo quando lhe são reconhecidas as qualidades de um dos astrofísicos mais originais das últimas décadas, fica o prejuízo de infelizes comparações com Newton, Faraday ou Einstein, onde a hipérbole não está ausente. Hawking vê a sua popularidade com uma ironia que dissimula alguma satisfação. Desdenhando a comparação com Einstein, esclarece que escreveu os livros porque tem de pagar às enfermeiras...
Hawking não precisa de pagar às suas enfermeiras para ser conhecido e respeitado na comunidade científica internacional. Se acaso não existissem outros, bastariam para tanto os seus trabalhos de 1974 em que junta a teoria da relatividade geral com a mecânica quântica para concluir que um buraco negro pode, ao contrário do que o nome indica, emitir luz. Essa investigação situa-se nos limites da física actual. A nossa física, a descrição do mundo de que somos capazes, termina nessas singularidades do espaço-tempo que são os buracos negros, estrelas tremendamente maciças que, tendo chegado ao fim do seu ciclo de vida, colapsaram irreversivelmente.

O presente livro reúne dois escritos de Hawking que são anteriores à Breve História do Tempo, mas que, depois do êxito deste último, merecem uma divulgação acrescida. Um, «A fronteira do espaço-tempo», saiu em 1989 numa colectânea de textos intitulada A Nova Física, editada pelo físico Paul Davies. O outro é a lição inaugural proferida quando, em 1980, tomou posse da famosa «Lucasian Chair» da Universidade de Cambridge, a cátedra ocupada antes por Isaac Newton e Paul Dirac. Intitula-se «Está à vista o fim da física teórica?», e só estava acessível como pequeno opúsculo universitário. Os dois textos têm em comum, além do autor, o facto de tratarem o problema do fim, num deles o fim da física (título dado a esta obra, já que um título, tanto como uma sugestão de conteúdo, pode ser uma provocação a alguns leitores!), ou o fim do espaço-tempo. Falta saber, e nisso Hawking não é nem pode ser conclusivo, se algum destes fins existirá.

O tema do fim sempre foi um motivo abundantemente glosado em cada repetido fin de siècle. O terror do fim apoderou-se de algumas populações no fim do primeiro milénio da era cristã. Entrou-se para as igrejas e rezou-se. A metáfora do fim da história está em voga nalguns meios culturais deste final do segundo milénio. Entra-se para as revistas e discute-se. Não admira que a ciência, banhada como está num contexto sociocultural, se abalance hoje a tratar do tema do fim: o fim de si própria e o fim do seu objecto de estudo. Mas é curioso que seja um homem perseguido pela iminência do seu próprio fim pessoal a lançar várias interrogações sobre o fim e a procurar com atenção as respectivas respostas.

Estará à vista o fim da física teórica? Hawking, numa nota introdutória que leva em conta os conhecimentos científicos mais recentes, vem agora adiar por umas décadas o fim da física anteriormente anunciado. Trata-se de saber se a física está para atingir uma «teoria de tudo», uma doutrina de superunificação, que supostamente tudo explique quando tudo reduz às interacções fundamentais. Há quem, como Hawking, acredite que essa possibilidade está bastante próxima. Steven Weinberg

Terá o espaço-tempo um fim? Não o sabemos e provavelmente nunca o saberemos. Especuladores com base em algumas equações cosmológicas bem podem afirmar a viabilidade de um universo finito, mas sem fronteiras. Mas as nossas observações espaciais têm limites — o chamado horizonte cosmológico — e o raio do universo, se tal expressão faz algum sentido, é decerto maior do que o raio do universo observável. O hipotético fim do mundo espacial estará para além do horizonte cosmológico. Quanto às nossas observações temporais, elas estão obviamente limitadas no passado pela grande explosão inicial. Para a frente, é preciso dar tempo ao tempo para sabermos se o nosso universo colapsará para um ponto, caso em que seria finito, ou se a presente expansão continuará ad aeternum, caso em que seria infinito. O nosso conhecimento actual não nos permite uma previsão segura. Tal como num bom romance policial, está instalado o mistério.

A teoria da unificação das forças e a história do universo são questões relacionadas que apaixonam os físicos neste final de século. A história, se alguma coisa recomenda, é prudência no que respeita às respostas. No final do século passado não faltou quem pensasse que a física estava definitivamente acabada. Tudo parecia descoberto e encaixar bem nos quadros mentais existentes. Foi precisa a descoberta da radioactividade, em 1896, dos quanta, em 1900, e da relatividade restrita, em 1905, para concluir que havia mundos extensíssimos além dos mundos que se conheciam.

Stephen Hawking é um provocador autorizado. A sua bagagem de astrofísico permite-lhe as maiores especulações. É também um escritor consagrado, como provam os quase 6 milhões de exemplares. Em contraste com a sua debilidade corpórea, o seu pensamento recheado de fino humor é sintoma de excelente saúde mental. Merece bem receber tudo o que for preciso para manter as suas enfermeiras.

Carlos Fiolhais

Coimbra, Novembro de 1993

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