quinta-feira, 23 de março de 2017

Prefácio de Lawrence Krauss ao seu livro "Um Universo vindo do nada"


Acaba de sair na Gradiva um livro que tem gerado polémica em todo o mundo. "Um Universo vindo do nada" do astrofísico Lawrence Krauss. Transcrevo o início do prefácio original escrito pelo próprio autor (o posfácio é de Richar Dawkins):

A bem da transparência, e logo no início, devo admitir que não defendo a ideia de que a criação implica um criador, ideia que está na base de todas as religiões do mundo. Todos os dias surgem, subitamente, objectos belos e miraculosos, de flocos de neve numa manhã fria de Inverno a arco‑íris depois da chuva num final de tarde de Verão. No entanto, ninguém, a não ser os fundamentalistas mais acérrimos, sugeriria que cada um destes objectos é criado amorosa e meticulosamente e, mais importante, com um certo propósito, por uma inteligência divina. De facto, muitos leigos, assim como cientistas, troçam da nossa capacidade de explicar flocos de neve e arco‑íris com leis da física simples e elegantes.

É claro que podemos perguntar, e muitos fazem‑no, «De onde vêm as leis da física?», e, de forma mais sugestiva, «Quem criou estas leis?» Mesmo quando conseguimos responder a esta primeira questão, normalmente perguntam‑nos a seguir, «Mas donde é que isso veio?» ou «Quem é que criou isso?» e assim por diante.

Em última análise, muitas pessoas razoáveis são atraídas para a Causa Primeira, como diriam Platão, São Tomás de Aquino ou a Igreja Católica Romana dos dias de hoje, e assim supor algum ser divino: um criador de tudo o que existe e de tudo o que virá a existir, alguém ou algo eterno e omnipresente.

No entanto, a declaração de uma Causa Primeira ainda deixa a questão seguinte em aberto: «Quem criou o criador?» Afinal, qual é a diferença entre argumentar a favor de um criador eterno e a favor de um Universo eterno sem criador?

Estes argumentos lembram‑me sempre a famosa história de um especialista que dava uma aula sobre
as origens do Universo (por vezes identificado como Bertrand Russell, outras vezes como William James), e foi desafiado por uma mulher que acreditava que o mundo está assente numa tartaruga gigante que, por sua vez, é suportada por outra, e assim sucessivamente... «até ao fim!» Uma regressão infinita de uma qualquer força criativa que se gera a si própria, mesmo uma força imaginada maior do que tartarugas, não nos aproxima do que quer que seja que gere o Universo. No entanto, esta metáfora da regressão infinita poderá estar mais próxima do processo real pelo qual o Universo foi criado do que a explicação de um único criador.

Definir a questão argumentando que a última responsabilidade é de Deus poderá parecer que evita o
problema da regressão infinita, mas, aqui, invoco o meu mantra: o Universo é como é, quer gostemos ou não. A existência ou inexistência de um criador não depende dos nossos desejos. Um mundo sem Deus ou propósito pode parecer duro ou inútil, mas não é, por si só, condição necessária para que Deus exista.

Do mesmo modo, as nossas mentes poderão não ser capazes de compreender facilmente infinitos (embora a matemática, um produto das nossas mentes, lide facilmente com eles), mas não nos dizem que eles não existem. O nosso universo poderia ser infinito em espaço e em tempo. Ou, como Richard Feynman disse uma vez, as leis da física poderiam ser uma cebola com camadas infinitas, com novas leis à medida que exploramos novas escalas. Simplesmente não sabemos!

Durante mais de dois mil anos, a questão «Porque existe algo em vez de nada?» tem sido apresentada como um desafio à proposição de que o nosso Universo — que contém um vasto complexo de estrelas, galáxias, seres humanos e sabe‑se lá que mais — poderá ter surgido sem um desígnio, uma intenção ou um propósito. Embora normalmente esta questão seja de teor filosófico ou religioso, é, primeiro e principalmente, uma questão sobre o mundo natural, e, logo, o local adequado para a tentar resolver é, em primeira instância e principalmente, a ciência.

O objectivo deste livro é simples. Quero mostrar como a ciência moderna, nas suas diversas vertentes, pode abordar e aborda a questão de saber porque há algo em vez de nada: as respostas que se têm obtido — desde observações experimentais assombrosamente belas a teorias que subjazem a boa parte da física moderna — sugerem que o facto de algo surgir do nada não é um problema. Com efeito, algo vindo do nada deve ter sido condição necessária para que o Universo surgisse. Adicionalmente, tudo indica que foi assim que o nosso Universo poderá ter surgido.

Sublinho aqui a palavra poderá, porque é possível que nunca venhamos a ter informações empíricas suficientes para resolver esta questão definitivamente. Mas o facto de um universo vindo do nada ser sequer plausível é certamente significativo, pelo menos para mim.

Antes de prosseguir, quero dedicar algumas palavras à noção de «nada» — um tema a que regressarei adiante com mais profundidade, pois aprendi que, quando se discute esta questão em fóruns públicos, nada perturba mais os filósofos e teólogos que discordam de mim do que a noção de que eu, como cientista, não compreendo verdadeiramente [o] «nada.» (Estou tentado a contrapor aqui que os teólogos são especialistas em nada.)

O «nada», insistem, não é nenhuma das coisas que eu discuto. Nada é «não‑ser», num qualquer sentido vago e mal definido. Isto lembra‑me os meus próprios esforços para definir «design inteligente», quando comecei a ter debates com criacionistas, expressão que, ficou claro,
não possui uma definição distinta, excepto para dizer o que não é. «Design inteligente» é simplesmente uma expressão que «põe tudo no mesmo saco», usado para contrapor à evolução. Da mesma forma, alguns filósofos e muitos teólogos definem e redefinem «nada» como não sendo qualquer uma das versões do nada que os cientistas descrevem actualmente.

Mas, na minha opinião, é aí que reside a ruína intelectual de muita da teologia e de alguma da filosofia moderna. Pois «nada» é seguramente tão físico como «algo», especialmente se for definido como a «ausência de algo». Cabe‑nos então compreender, de forma precisa, a natureza física de ambas as quantidades. E sem ciência qualquer definição não passa de meras palavras.

Há um século, se alguém descrevesse «nada» como o espaço vazio, sem qualquer entidade material real, talvez não enfrentasse grande oposição. Mas os resultados do século passado ensinaram‑nos que o espaço vazio está, na verdade, longe do nada intacto que supusemos antes de percebermos melhor como a Natureza funciona. Agora, os críticos religiosos dizem‑me que eu não me posso referir ao espaço vazio como «nada», mas antes como um «vácuo quântico», para distingui‑lo do «nada» idealizado dos filósofos ou teólogos.

Assim seja. Mas, e se estivermos dispostos a descrever o «nada» como a ausência do próprio espaço e do próprio tempo? Será suficiente? Mais uma vez, suspeito que já tenha sido... há algum tempo. Mas, como irei explicar, descobrimos que o espaço e o tempo podem, eles próprios, surgir espontaneamente, pelo que agora dizem‑nos que mesmo este «nada» não é realmente o nada que nos interessa. E dizem‑nos que a fuga do nada «real» requer o divino, sendo assim definido por decreto como «aquilo a partir do qual apenas Deus pode criar algo».

Tem sido sugerido por vários indivíduos com quem tenho debatido a questão que, se existe o «potencial» para criar algo, então não se trata de um estado de verdadeiro nada. E ter leis da Natureza que dão esse potencial afasta‑nos com toda a certeza do verdadeiro domínio do não‑ser. Mas depois, se argumento que talvez as próprias leis tenham também surgido espontaneamente, como poderá ter sido o caso, então isso não é suficiente, porque qualquer que seja o sistema em que as leis tenham surgido não se trata de um verdadeiro nada.

Tartarugas por aí abaixo? Não creio. Mas as tartarugas são apelativas porque a ciência está a mudar drasticamente as regras do jogo, deixando algumas pessoas desconfortáveis. É claro que essa é uma das finalidades da ciência (ou «filosofia natural», no tempo de Sócrates). O desconforto significa que estamos no limiar de novas descobertas. E certamente que invocar «Deus» para evitar a pergunta «como» é simplesmente preguiça intelectual. Afinal, se não existisse potencial para criar, Deus não poderia ter criado nada. Seria malabarismo semântico afirmar que a potencial regressão infinita é evitada porque Deus existe fora da Natureza e, portanto, o próprio «potencial» para a existência não é uma parte do nada a partir do qual surgiu a existência.

O meu verdadeiro objectivo aqui é demonstrar que a ciência tem, de facto, alterado o panorama, substituindo estes debates abstractos e inúteis sobre a natureza do nada por esforços úteis e operacionais para descrever o modo como o nosso Universo poderia realmente ter surgido. Vou explicar também as possíveis implicações desta origem no nosso presente e futuro.

Isto reflecte um facto muito importante. A religião e a teologia têm sido, no mínimo, irrelevantes, quando se trata de compreender o modo como o nosso Universo evolui. Geralmente, tendem a turvar as águas, por exemplo, focando‑se em questões como o nada sem dar uma definição do termo baseada em provas empíricas. Embora ainda não compreendamos inteiramente a origem do nosso Universo, nada leva a esperar que as coisas mudem neste aspecto. Adicionalmente, espero
que o mesmo se aplique, em última análise, à nossa compreensão de áreas que a religião considera como seu território exclusivo, como a moral humana.

A ciência tem sido eficaz em promover a nossa compreensão da Natureza porque o ethos científico se baseia em três princípios‑chave: (1) seguir as provas onde quer que estas levem; (2) se dispomos de uma teoria, temos de estar dispostos tanto a tentar provar que está errada como que está certa; (3) o derradeiro árbitro da verdade é a experimentação, não o conforto que retiramos das nossas crenças a priori, nem a beleza ou elegância que atribuímos aos nossos modelos teóricos.

Os resultados das experiências que descrevo aqui não são só oportunos, são também inesperados. A tapeçaria que a ciência tece ao descrever a evolução do nosso Universo é consideravelmente mais rica e fascinante do que quaisquer imagens reveladoras ou histórias imaginativas que os seres humanos tenham inventado. A Natureza apresenta surpresas que ultrapassam consideravelmente as suposições criadas pela imaginação humana.

Ao longo das últimas duas décadas, uma excitante sucessão de avanços na cosmologia, teoria das partículas e gravitação mudou completamente a forma como vemos o Universo, com implicações surpreendentes e profundas na nossa compreensão das suas origens, bem como do seu futuro. Portanto, nada poderia ser mais interessante como tema de escrita, passe o trocadilho.

A verdadeira inspiração para este livro não vem tanto de um desejo de dissipar mitos ou atacar crenças, mas do meu desejo de celebrar o conhecimento e o Universo absolutamente surpreendente e fascinante que o nosso se revelou ser.

A nossa busca leva‑nos a fazer uma visita‑relâmpago aos confins do Universo em expansão, desde os primeiros momentos do Big Bang até ao futuro distante, e inclui talvez a mais surpreendente descoberta em física do século passado.

Com efeito, a motivação imediata para escrever este livro agora é uma profunda descoberta sobre o Universo que tem impulsionado a minha própria investigação científica nas últimas três décadas e que resultou na conclusão surpreendente de que a maior parte da energia do Universo reside numa qualquer forma misteriosa, ainda inexplicável, que permeia todo o espaço vazio. Não é um eufemismo dizer que esta descoberta mudou o panorama da cosmologia moderna.

Por um lado, esta descoberta promoveu um apoio admirável e novo à ideia de que o nosso Universo
surgiu precisamente do nada. Incitou‑nos, igualmente, a repensar uma série de hipóteses sobre os processos que poderiam reger a sua evolução e, em última análise, a questionar se as próprias leis da Natureza são verdadeiramente fundamentais. Por sua vez, tudo isto tende a tornar a questão de saber «porque há algo em vez de nada» menos impressionante, se não mesmo completamente simples, como espero que seja a minha descrição.

(...)

LAWRENCE M. KRAUS

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Pretender que existe o nada é pretender que o nada não existe. Se o nada não existe, qual é o problema que o nada suscita?

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