sábado, 28 de fevereiro de 2015

O PROBLEMA DA COR

Meu artigo no último "As Letras entre as Artes":


Ao filósofo Demócrito, dos séculos V e IV antes de Cristo, é atribuída a frase: Por definição há cor, há doce e há amargo, mas na realidade só há átomos e espaço vazio”. Distinguimos as cores, o vermelho do azul por exemplo, mas o que são elas no fundo?  E qual é a sua relação com os átomos?

O grande físico inglês Isaac Newton, em finais do século XVII e inícios do século XVIII,  tentou responder a estas questões a partir das suas investigações experimentais com um prisma de vidro: um feixe de luz branca do Sol, disperso pelo prisma, originava todas as cores do arco-íris (não sete, mas em rigor infinitas), formando o “espectro de luz”. Vale a pena ler o relato da sua experiência nos Philosophical Transactions da Real Sociedade de Londres:

“Para cumprir minha promessa anterior, devo sem mais cerimónias informar que, no começo do ano de 1666 (época que me dedicava a polir vidros óptico de formas diferentes da esférica), obtive um prisma de vidro rectangular para tentar observar com ele o célebre fenómeno das cores. Para este fim, tendo escurecido o meu quarto e feito um pequeno buraco na minha janela para deixar passar uma quantidade conveniente de luz do Sol, coloquei o meu prisma numa entrada para que ela [a luz] pudesse ser  refractada para a parede oposta. Isso foi inicialmente um divertimento muito prazenteiro: ver todas as cores vivas e assim intensamente produzidas, mas, após um tempo dedicando-me a estudá-las mais seriamente, fiquei surpreso por vê-las…”

Newton pensava que a luz era formada por corpúsculos (átomos, num certo sentido) e que a corpúsculos de tamanhos diferentes correspondiam cores diferentes, por atravessarem o prisma de modo diferente. Para ele, a cor era uma propriedade da luz e não dos corpos. Vemos, por exemplo, um corpo vermelho, porque ele reflecte para nós luz com essa cor (para Newton seria feita de corpúsculos ”vermelhos”). Se o branco dá  as cores, as cores também dão o branco: O chamado disco de Newton (um círculo com as cores do arco-íris), quando posto a girar, é visto como branco.

À teoria de Newton reagiu, no início do século XIX, o escritor alemão Wolfgang von Goethe. Para eles as várias cores da luz nunca poderiam dar branco, ao contrário do que pretendia Newton. Goethe observou, tal como Newton, o comportamento espectral da luz, mas discordando dele, tentou formular uma teoria alternativa. O resultado foi o seu livro de 1810, A Doutrina das Cores. Para Goethe, o vermelho era a impressão causada no nosso olho por uma luz branca que tinha atravessado um meio translúcido como o prisma. Para Newton a cor era uma propriedade objectiva da luz, ao passo que para Goethe ela era uma propriedade subjectiva no olho. Na visão de Goethe, dado o imprescindível papel do sujeito, o objectivo e o subjectivo, se quisermos ciência e poesia, não eram facilmente dissociáveis. O homem faz parte da Natureza e, sem o considerar, não se poderia compreender a Natureza.  Como escreveu no poema A Natureza:

“Natureza! Por ela rodeados e a ela ligados, não nos é permitido sair do seu amplexo, nem penetrar nela mais profundamente. Sem lho pedirmos e sem nos avisar, ela acolhe-nos no vórtice da sua dança, e lança-se connosco, até que cansados, caiamos nos seus braços.”

Do ponto de vista científico, Newton estava basicamente certo e Goethe errado. A teoria das cores de Goethe não conseguiu competir com a teoria de Newton. No século XIX, a teoria corpuscular da luz foi, porém, substituída pela teoria ondulatória: a luz não é formada por corpúsculos, mas sim por ondas e as ondas correspondentes, tendo luzes de diferentes cores diferentes comprimentos de onda (o comprimento de onda é a distância entre dois altos sucessivos de uma onda). Mesmo substituindo partículas por ondas, o fundamental da teoria da cor de Newton permaneceu intacto: a cor é uma propriedade da luz e a luz branca resulta da soma de luz de várias cores.

Foi preciso chegar ao século XX para, com a teoria quântica, se perceber a relação profunda entre luz e matéria Hoje é bem conhecido que a matéria é feita de átomos e estes recebem ou enviam luz, embora apenas de certos comprimentos de onda. Menos conhecido é o facto de que alguns dos nomes maiores da teoria quântica, como o alemão Werner Heisenberg, se terem detido na questão de Goethe sobre a origem das cores. Em 1941, Heisenberg proferiu uma palestra na Hungria em que abordou em pormenor a querela entre Goethe e Newton. Na versão húngara da palestra, há uma nota em apêndice  que diz o seguinte:

“Deste estado de coisas [a física quântica] pode extrair-se a esperança de que, num tempo não muito distante, será possível abrir uma vereda para o entendimento da vinculação entre os domínios das ciências naturais e do espírito.”

Não há a certeza que a nota seja da autoria de Heisenberg. Mas o seu espírito é. A física quântica voltava a dar um lugar ao observador, um lugar que tinha sido tirado pela física clássica.

1 comentário:

Anónimo disse...

Nem foi com a física clássica que o observador foi retirado (já em Aristóteles tinha sido, por exemplo), nem a física clássica retira o observador, como qualquer pessoa minimamente conhecedora da obra de Newton sabe, nomeadamente pelo "binómio conceitos verdadeiros/relativos".

Por outro lado, os corpúsculos em Newton são átomos em sentido genuíno, não apenas "em certo sentido".

Sabe-se pouco disto por aqui.

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