terça-feira, 25 de setembro de 2012

A subjetivização da maldade

Volto ao tema da maldade, aqui aberto pela Helena Damião (aqui e aqui). Merece um pouco de análise e de debate.

É um conceito polissémico pela infinidade de situações em que se pode manifestar, e tem uma escala gradativa quase incomensurável. Desde a pequena maldade de criança (que às vezes não é assim tão pequena) até às crueldades mais inomináveis e devastadoras de que a história nos dá exemplos, há formas e graus de maldade para todos os gostos e feitios.

A autonomização da moral, a que assistimos desde o século XVIII - e que desembocou ou está a desembocar numa individualização ética de perigosíssimas consequências - retirou à palavra muito do seu tradicional conteúdo.

A maldade tornou-se um conceito vago, que os indivíduos e as circunstâncias de contexto têm vindo a relativizar, esvaziando-o e, portanto, desvalorizando-o. Mas, chame-se-lhe maldade ou outra coisa qualquer, ela aí está, com todo o seu potencial inserido na alma humana, escondido no mais fundo dela e pronta a manifestar-se das mais variadas maneiras.

Como diz Edgar Morin em Os meus demónios: «o ser humano contém em si um ruído de monstros que liberta em todas as ocasiões favoráveis» (Os monstros da gravura vomitando-se em levas sucessivas ou devorando-se sem cessar, lembram-se?). É prudente, portanto, pensar que ela está sempre pronta a aparecer, que basta que baixemos a guarda (em termos pessoais e sociais) ou que criemos, ou deixemos que sejam criadas, as condições favoráveis, para a maldade se manifestar das mais variadas e inesperadas maneiras e fazer as suas vítimas.

Não convém, pois, desvalorizar o conceito, tratá-lo com a superioridade displicente dos cínicos, que pensam sempre dominar as situações a seu favor, e se sentem desobrigados de contribuir, com o seu exemplo e as suas atitudes, para a salubridade social e moral dos lugares e dos grupos. Até porque muitas vezes se enganam, pois facilmente as coisas se invertem e uma onda, em refluxo, os submerge tornando-os vítimas, de si mesmo e de outros iguais ou piores.

As revoluções, francesa e russa, por exemplo, produziram imensas vítimas entre os que, em certo momento, se julgaram acima do bem e do mal, ou capazes de imporem uma ordem e, em breve, se viram trucidados por ela, ou por outros com igual direito a impor a sua lei, e que, por sua vez, sofreram o mesmo destino tempos depois. Aliás não é preciso pensar em exemplos tão monstruosos; todos temos conhecimento de situações em que o feitiço se voltou contra o feiticeiro. Mas como isto só às vezes acontece e a justiça nem sempre triunfa, temos todos que fazer por ela, pensando em nós, e nos outros, que não são mais que as outras faces de nós.

Em suma, a moral (outra palavra fora de moda) tem razão de ser e é condição da vida pessoal e social. E por muito que certas teorias, prendendo ilegitimamente estas questões às praticas religiosas, têm procurado desvaloriza-las, pessoalizá-las para além do razoável, há dimensões objetivas que têm que ser preservadas. Esta mentalidade tem-nos levado à desvalorização de uma aprendizagem moral de séculos, que nos pode ser fatal.

E se é certo que se avançou muito em relação a esses tempos, em inúmeras coisas e sobretudo nos direitos e liberdades dos cidadãos, é também verdade que temos vindo a desvalorizar muito dessa aprendizagem, que está consubstanciada em conceitos com conteúdos objetivos, como coragem, honestidade, bondade, modéstia, humildade, honra, etc., e que temos vindo a desvalorizar por subjetivização excessiva.

Vago e polissémico que seja, o conceito de maldade não pode perder o conteúdo, sob risco de deixarmos de saber o que é mal e bem, humano e desumano e de entregarmos a cada um, e às suas razões particulares, a ordem axiológica das pessoas e das coisas. Razões que, sabemo-lo por demais, são muitas vezes interesseiras, ambíguas, confusas e até perversas.

Frequentemente a maldade resulta da paixão, da cegueira ideológica, da vontade de impor uma ordem que se julga justa e clarividente. Os sentimentos facilmente se incendeiam e a razão com facilidade desaparece quando a vontade é demasiado forte e intransigente. Há muitas vezes razões para a violência, e esta com facilidade se transforme em crueldade.

Gustavo Le Bom em As opiniões e as crenças considera esta dinâmica da vontade como um fator de progresso. E pode ser. Mas a vontade de vencer, a agressividade necessária para ultrapassar dificuldades e reveses, mesmo a paixão e a força que nos movem, e que têm produzido o progresso, não podem ser confundidos com maldade, ou crueldade ou sadismo. Do mesmo modo que a bondade se não pode nem deve confundir com moleza de caráter, inibição ou indiferentismo.

O que caracteriza a moral é justamente o estabelecer de um limite para lá do qual não é legítimo ir e definir um padrão orientador nas ações e nos sentimentos. E para isso é preciso também energia, vontade e até alguma controlada agressividade. E dentro dos quais as manifestações pessoas têm ainda grande leque de opções e muita margem de manobra. E mais, é pensar numa ordem justa e digna e vivê-la e promovê-la entre todos.

João Boavida

3 comentários:

epá! disse...

mas a moral é circunstancial... existe realmente o zeitgeist moral.

José Batista disse...

Eis um texto que eu gostava de ter escrito.

Ildefonso Dias disse...

Professores, João Boavida e Helena Damião;

Li em tempos o seguinte;

“Não se deve atribuir à guerra a maldade dos homens. Ela é uma consequência inelutavél de fenómenos que nada tem a ver com a psiquiatria.”

Gostaria de saber a vossa opinião sobre isto, até porque, se excluirmos as catástrofes naturais, os grandes dramas da humanidade devem-se, precisamente à guerra. E o que sobra de drama humanitário, se atribuído a maldade dos homens, será, de longe, muito inferior àquele, não é assim?!!!

Cordialmente,

NOVA ATLÂNTIDA

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