sexta-feira, 27 de abril de 2007

A razão é arbitrária?

Objecta-se por vezes à racionalidade do seguinte modo: a razão não é o único instrumento na procura da verdade. Na realidade, não é possível defender a razão enquanto a única ou a melhor via para a verdade sem argumentar de forma circular. Tudo o que podemos fazer para defender a razão é apelar aos princípios da própria razão; e tudo o que podemos fazer para levantar objecções a outras vias para a verdade é uma vez mais apelar à razão. Mas isto é circular. Logo, aceitar ou não a razão e o pensamento crítico é uma questão de preferência pessoal ou arbitrária.

As pessoas que aceitam este tipo de argumento podem encarar a razão e o pensamento crítico como importantes e interessantes. Mas encaram-nos também como uma espécie de «jogo», em última análise sem fundamento, ao mesmo nível de outros «jogos» (como a tradição, a autoridade e a revelação religiosa); e estas pessoas pensam que não é possível decidirmo-nos, com base em quaisquer princípios, a favor de um dos «jogos» em detrimento de outro.

Este argumento está errado porque não tem em consideração todas as alternativas à nossa disposição. O argumento centra-se no suposto dilema de defender a razão (e levantar objecções à desrazão) recorrendo à razão ou a qualquer outro meio. A primeira alternativa do dilema é circular, a segunda arbitrária. Logo, conclui o argumento, não se pode defender a razão (nem levantar objecções à desrazão) de forma apropriada.

Habitualmente o argumento fica-se por aqui. Mas com certeza que temos de considerar a alternativa: como poderemos defender a desrazão ou a tradição, autoridade e revelação religiosa? Uma vez mais, temos um dilema: ou o fazemos racionalmente ou não. Não podemos defender a desrazão usando a razão porque isso é auto-refutante. Se há boas razões a favor da tradição, autoridade e experiência religiosa, então estas não são formas a-racionais de procurar a verdade. Nesse caso, limitámo-nos a alargar o domínio da razão. Se, por outro lado, defendermos a desrazão usando a desrazão, estaremos a usar o mesmo modo circular de raciocinar que usámos para defender a razão. Assim, qual das alternativas é melhor? Defender a razão circularmente ou defender a desrazão circularmente?

Defender a desrazão circularmente é pior porque não é apenas circular: é também arbitrário. Defender a razão circularmente não é arbitrário. A circularidade aqui envolvida é muito geral e é informativa. Qualquer estudante de lógica sabe como se faz para avaliar criticamente as próprias regras de inferência que usamos para raciocinar. Temos de usar um conjunto de regras para avaliar criticamente outro conjunto, mas qualquer conjunto pode ser e tem de facto sido criticamente avaliado pelos lógicos e filósofos (e não pelos defensores da desrazão). Só não podemos avaliar todas as regras de inferência ao mesmo tempo usando nenhumas regras de inferência. Mas o mesmo acontece com qualquer análise da desrazão: também aí teremos de usar regras de inferência, o que é auto-refutante se estamos a tentar argumentar contra todas as regras de inferência (isto não funciona nem mesmo por reductio, pois os próprios argumentos por reductio são apenas um tipo de regra).

A escolha não é, então, entre dois «jogos» igualmente sem fundamento e arbitrários, a razão e a desrazão. A escolha é entre a arbitrariedade circular (a desrazão) e a não arbitrariedade circular ou circularidade crítica (a razão). Claro que sempre que alguém apresenta uma razão a favor de algo, incluindo uma razão para preferir a não arbitrariedade à arbitrariedade, podemos — e devemos — colocar essa razão em causa. Mas isso é apenas o pensamento crítico em acção e, portanto, em si, uma refutação do pensamento acrítico e da desrazão.

15 comentários:

Vasco Figueira disse...

A ler também:

Gödel e a Computabilidade
http://centria.di.fct.unl.pt/~lmp/publications/online-papers/godel_computabilidade.pdf

Gödel's Incompleteness Theorems
http://en.wikipedia.org/wiki/G%C3%B6del's_incompleteness_theorem

Vítor Mácula disse...

Caro Desidério.

Isso depende do que entende como “verdade”. Tanto o fáctico como o emocional/disposicional, não precisam de consistência lógica para nos arrebatar, ou pelo menos, habitar-nos. E nem todas as investidas na procura dum sentido para o que nos acontece têm de se orientar pela lógica formal; o que não significa que não sejam todas passíveis de tal, como é evidente. Assim numa analogia grosseira, porque específica: ter de argumentar numa relação amorosa, não é o todo das conectivas dessa relação.

Mas naturalmente que a razão é algo de fundamental na nossa forma de orientação e esclarecimento.

Um abraço

Lufiro disse...

Olá Desidério

Já tinha lido este teu texto quando li o teu livro. Acho-o muito esclarecedor, pois explica muito bem por que razão não podemos escolher racionalmente a a-racionalidade...Só tenho algumas duvidas quanto a isto:

«defender a razão circularmente não é arbitrário. A circularidade aqui envolvida é muito geral e é informativa»

O que queres dizer com "geral"? Já quando li pela primeira vez fiquei com algumas duvidas.

Abraço

Luís E Rodrigues

Anónimo disse...

Caro Desidério,

Não vem ao caso de qual razão estás a falar? Racionalidade lógica, matemática, científica, artística, teológica, etc? Lembro de já ter lido teólogos defendendo que não é necessário evidências para se ter fé. Plantinga, por exemplo. Estou a reduzir demasiadamente o argumento.

http://plato.stanford.edu/entries/religion-science/ (Agora há um verbete).

Qual o impacto que certas críticas a princípios fundamentais da razão provocaram na noção de razão? Por exemplo, as críticas de Jan Lukasiewicz, ou a lógica paraconsistente.

Certa vez lembro de ter perguntado a um professor de lógica o que seria a razão, e ele sem jeito, disse-me que no momento apenas poderia me dizer que é impossível pensar a razão sem levar em conta a racionalidade matemática.

O que pensar das críticas de Heidegger ao princípio de identidade? Em Aristóteles o princípio de identidade é lógico apenas, ou também ontológico?

Desidério Murcho disse...

Olá a todos

Obrigado pelos interessantes comentários.

1. Não parece verdade que não precisemos de argumentos na vida emocional. Se a Maria ama Paulo e Paulo ama a Maria e não há impedimentos ao seu amor, seria irracional não o realizar. Se a Maria ama Paulo perdidamente e há todos os indícios de que ele não a ama, antes a explora emocionalmente, então é irracional não dar atenção a esses indícios. Não me parece concebível uma vida emocional rica sem racionalidade.

2. Nunca falei de lógica formal no meu post. A racionalidade não se reduz à lógica formal. Uma ilusão muito comum em que é preciso não cair é precisamente começar por reduzir a racionalidade a uma caricatura lógico-matemática e depois declarar triunfantemente que a arte nada tem a ver com a racionalidade. Com essa racionalidade reduzida, não. Mas não se concebe a possibilidade de se compor a nona sinfonia de Beethoven sem racionalidade.

3. A circularidade pode ser viciosa ou virtuosa. É viciosa quando não é informativa. Definir “solteiro” como “não casado” e “não casado” como “solteiro” não é informativo. Mas quando consultamos um dicionário e o significado da palavra A remete para B, esta para C, esta para D, esta para E e finalmente esta para A, este circuito pode ser informativo, o que torna a circularidade virtuosa. A circularidade envolvida na defesa da razão é muito geral neste sentido em que pelo caminho esclarecemos imensas coisas importantes. É um pouco o que acontece quando se estuda os fundamentos da lógica: claro que temos de usar raciocínios, que por sua vez serão desejavelmente válidos, logicamente, mas o estudo dos fundamentos da lógica não deixa de ser informativo por isso.

4. O que nos conduz ao trabalho crítico que os filósofos fazem e é bom que façam sobre os fundamentos de tudo, incluindo das verdades lógicas mais centrais, como “Todo o objecto é auto-idêntico”. Mas este trabalho é intrinsecamente racional. E o nosso papel perante tal trabalho é avaliar criticamente os seus resultados e argumentos e não aceitá-los bovinamente como verdades emocionais ou religiosas indiscutíveis.

5. A ideia de que se pode falar de “racionalidade x” ou “racionalidade y” é precisamente o que pretende ser refutado pelo meu post. Pensar isto é supor que cada domínio da racionalidade se rege por leis próprias, que não podem ser postas em causa a partir de fora. Mas podem. Podemos sempre perguntar tranquilamente se o modus ponens é válido, se as pretensas verdades da aritmética são falsas, se as pretensas verdades reveladas da religião x ou y são falsidades, etc. Podemos sempre exercer o nosso espírito crítico, desde que não deitemos fora o cérebro. Este aspecto é melhor desenvolvido no restante capítulo do livro de onde tirei este excerto.

6. Muitos filósofos realistas contemporâneos defendem que a metafísica é o fundamento da lógica e não o contrário. Ou seja, é porque a realidade é como é que a lei da identidade, por exemplo, é verdadeira, e não oposto. É precisamente isto que eu defendo também. O idealismo linguístico é hoje cada vez menos defendido. Sobre isto vale a pena ler este excelente texto:
http://criticanarede.com/html/filos_viragem.html (subscrição)


Uma vez mais, obrigado a todos! Espero ter sido esclarecedor.

Anónimo disse...

Respigando “Da Certeza” de Wittgenstein:

§ 239. Acredito que todo o ser humano tem um pai e uma mãe humanos; mas os católicos acreditam que Jesus só teve uma mãe humana. E poderia haver outras pessoas que acreditassem que existem seres humanos que não tiveram pais e não dar crédito a quaisquer provas em contrário. Os católicos também crêm que, em certas circunstâncias, uma hóstia muda completamente de natureza, contra toda a evidência. E assim, se Moore dissesse:”Eu sei que isso é vinho e não sangue”, os católicos contradizê-lo-iam.

§ 240. Em que se baseia a convicção de que todos os seres humanos têm pais? Na experiência. E como posso basear esta convicção segura na minha experiência? Bem, baseio-a não só no facto de ter conhecido os pais decertas pessoas, mas sobretudo no que tenho aprendido sobre a vida sexual dos seres humanos e a sua anatomia e fisiologia: e também no que vi e ouvi relativamente a animais. Mas será isso realmente uma prova?

§ 255. Duvidar tem certas manifestações características, mas só são características da dúvida em circunstâncias particulares. Se alguém disesse que duvidavada existência das suas mãos, as contemplasse por todos os lados, tentando verificar que não era tudo provocado pelos espelhos, etc.,não teríamos a certeza se deveríamos chamar a isso duvidar. Poderíamos descrever o seu comportamento como semelhante ao comportamento da dúvida, mas o seu jogo não seia o nosso.

§ 256. Por outro lado o jogo de linguagem muda com o tempo.

Com isto Wittgenstein quererá dizer:
- Que o domínio da lógica analítica não são questões de facto mas de sentido?
- Não questões de verdade ou falsidade empírica, mas de sentido e de contra-senso?
- As possibilidades lógicas e não as realidades empíricas?
- As tarefas críticas da razão são descrever ou especificar formulações de palavras amplamente usadas que parecem fazer sentido, mesmo que um exame mais atento não revele tal?

Fernando Dias

Joao Galamba disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Joao Galamba disse...

circularidade produtiva de que falas não é mais do que o círculo hermeneutico que existe em qualquer forma de compreensão/entendimento.Por outro lado, a existência deste círculo produtivo faz com que qualquer definição (uma espécie de meta-teoria) sobre o que constitui uma razão se torne tautologica (de uma forma não informativa). Um dos exemplos disto é na filosofia moral onde a busca de algo que transcenda a moral para a legitimar fracassa necessariamente (por exemplo, kant)

Vítor Mácula disse...

Pois, Desidério, mas não me parece que alguém tenha dito que não são precisos argumentos e reflexão seja para o que for (e não me refiro apenas à caixa de comentários). Passa-se é que nem o facto bruto de existir o Paulo e a Maria, assim como o terem-se apaixonado, resultam de uma dedução ou reflexão. Claro que se pode aduzir, como o faz algum determinismo científico, que se tivéssemos acesso às condições sociais, biológicas e psicológicas, podemos deduzir os resultados emocionais do encontro de X com Y (e será que eles próprios os poderiam prever sem modificar, precisamente, essas emoções?). Para além disto ser uma petição de princípio (contra as quais nada tenho contra, a não ser quando se disfarçam de universalidade ou evidência) passa-se também que o acontecimento de tal vivido pelos próprios, não é (geralmente;) acompanhado por tais representações sociais, biológicas, psicológicas… ou, vá lá, pelo menos – não somente.

Que a razoabilidade é transversal no humano, claro; também o eros o é, para não falar doutras coisas um pouco mais tenebrosas para a amiga razão, e até para nos ficarmos no teor do exemplo. Não sei é se reduzir um ao outro, ou se preferirmos, transpor um para o outro com vista a um esclarecimento, sem ter em conta, nem que seja hipoteticamente, tudo o que nesse acto é refractário dum para o outro… será afinal esclarecimento. Dá para a palheta, claro, comigo próprio ou com outros (nada melhor para tal do que a razoabilidade, afinal, ela é eminentemente discursiva).

A questão da lei da identidade, a mim faz-me pensar que ela muda um pouco de figura, quando em vez de aplicada aos fenómenos da visibilidade, se infere dela na consciência que se vive. Claro que esta cisão interior/exterior é muito problemática, mas para o caso serve. Je est un autre, dizia o outro, e não se trata de nenhuma irrazoabilidade, me parece. O fenómeno da auto-reflexão multiplica-nos, e não é preciso ser nenhum Rimbaud ou Pessoa para de tal se aperceber. Ou seja, a identidade de algo em determinado estado é mais nebulosa na própria consciência quando se refere a si própria.

Mas claro, também não me parece que haja “racionalidade x” e “racionalidade y” e por aí fora, mas sim “racionalidade aplicada a X, a Y…”

Seja como for, nem todos as actividades da consciência são racionais, e era nesse sentido que ia o meu reparo. Sem razão, não há 9ª sinfonia, é certo; tão só com ela, também não. Claro que aqui, depende imenso do que se entende por “razão”… refiro-me sobretudo ao raciocínio e à análise.

Quanto ao artigo da Crítica na rede, não paguei o euro… ;) E talvez seja pena, porque há aqui com certeza questões académicas cujas problematizações me escapam...

Anónimo disse...

Parece-me que o erro fundamental nesse raciocínio é não considerar a experiência como a fonte do conhecimento.A razão é ferramenta,mas não a fonte do conhecimento.A razão processa os dados adquiridos pela experiência,produzindo conhecimento.Isto chama-se empirismo.
O racionalismo,que é a crença na aquisição do conhecimento através da “razão pura”,independente da experiência,é coisa do passado.Pobre Descartes!

Anónimo disse...

Hummm... está visto que não percebi lá muito bem a lógica racional do artigo...

Não vejo o que há assim de tão extraordinário em afirmar que "a razão não é o único instrumento na procura da verdade". Aliás, provavelmente nem sequer é o melhor, ou seja, é bem possível que a razão só por si não consiga chegar à verdade ontológica do Ser. Mas pode aproximar-se, claro...

Anyway, e fora de especulações desse tipo, há obviamente duas outras formas de conhecimento da realidade, e ambas são até anteriores ao aparecimento da razão, falando do desenvolvimento normal do Ser Humano. Refiro-me ao sentimento, entendido genericamente como capacidade de sentir, e à intuição, que é conhecimento imediato que não necessita da mediação racional.

Ora bem, nenhuma destas duas formas de apercebermos o mundo exclui a razão, ou seja, aquilo que sentimos ou intuímos não tem de ser a-racional ou irracional... simplesmente É!..., e de facto a razão pode avaliar e até completar o resultado do sentir ou intuir. O exemplo atrás sobre a música é eloquente.

Aliás, o acto criativo, e mais ainda o flow de Csikszentmihalyi, são perfeitamente elucidativos a este respeito. O que afinal se diz com a simples afirmação "a razão não é o único instrumento na procura da verdade" é tão somente que existem outros mecanismos "built-in" que também nos conduzem ao conhecimento - tanto de nós próprios como do mundo exterior - tenha ou não a razão um papel posterior na sua avaliação. Mas enfim, pode até admitir-se que ela tem sempre esse papel, essa é já de facto uma discussão bem mais difícil...

Ou ainda, se a razão se baseia de racionalidade e lógica, deve alguém negar aquilo que sente e sabe só porque é ilógico ou irracional?! Bem, ou talvez não o consiga formular racionalmente, quiçá...

Ah! É que temos ainda aqui o problema da linguagem! Ora a razão exprime-se através da comunicação verbal, não é, e a lógica utiliza argumentos, sob a forma de linguagem comum ou matemática. E será possível reduzir TODA a experiência humana a essas simples fórmulas?! Onde fica lugar para o inexprimível, afinal?!

Por exemplo, o tetralemma de Nagarjuna, que já aqui citei e se refere à natureza e conhecimento do Real, não segue a lógca aristotélica e nem sei se pode ser enquadrado em qualquer tipo de lógica. Deveras, aqui esta questão é importante porque as experiências ditas "místicas" ou de "união religiosa" são, pelo menos parcialmente, inexprimíveis e a linguagem utilizada para as descrever é frequentemente incompreensível em termos da simples lógica formal. Vide, a este respeito, o famoso verso de Santa Teresa de Ávila, "que morro por não morrer".

Deveras, a própria linguagem poética ou a dos sentimentos subverte igualmente a mera lógica racional, como sabemos. E o estado de paixão ou arrebatamento amoroso - talvez um caso particular do transe místico, afinal - dificilmente pode ser reduzido a 2+2=4.

E para já, é tudo o que um ignaro Gnomito pode dizer desde a sua floresta...

Rui leprechaun

(...onde bem preguiça e dorme a sesta! :))


PS: Já agora... Deus, no sentido mais lato de Realidade última imaterial, está ou não para além da razão?! É ilógico ou irracional afirmar a sua existência, mesmo que não seja sequer possível justificá-la a 100% com os meros argumentos da razão?!

Ainda uma descrição da intuição musical... ou o "flow" criativo genial!

Falando em termos gerais, o germe de uma futura composição surge de repente e inesperadamente... Lança raízes com uma força e rapidez extraordinárias, irrompe da terra, projecta galhos e folhas e, finalmente, floresce. Não posso definir o processo criativo de qualquer outra maneira, excepto por esta símile.

Piotr Tchaikowsky

Anónimo disse...

Embora isto até talvez esteja um pouco deslocado aqui... não há Duendes aluados por cá, I guess!... ;) esta conversa hiper-racional fez-me lembrar um parágrafo do controverso "best-seller" de Susanna Tamaro - que provavelmente nenhum dos doutos discursantes sequer leu ou faz tenção de ler - onde ela, tal como eu, sobreleva o valor dos sentimentos em contraponto à hiper-racionalidade.

Já agora, note-se que o "coração" a que Tamaro se refere é a mesma fonte do indizível sentir que Saint-Exupéry imortalizou na conhecida frase, "O essencial é invisível para os olhos".

Actualmente, o coração faz pensar logo em algo de ingénuo, de vulgar. Na minha juventude, ainda era possível falar dele sem qualquer embaraço, mas agora é um termo que já ninguém usa. As raras vezes em que é citado é só com uma referência ao seu mau funcionamento: não é o coração na sua totalidade, mas uma isquemia coronária, uma leve dor da aurícula; mas já ninguém se refere a ele como sendo o centro da alma humana. Interroguei-me tantas vezes acerca do motivo desse ostracismo. "Quem confia no seu coração é um imbecil"”, dizia muitas vezes o Augusto, citando a "Bíblia"”. Mas um imbecil porquê? Será por o coração se assemelhar a uma câmara de combustão? Por haver escuridão lá dentro, escuridão e fogo? A mente é moderna, o coração é antigo. Por isso se pensa que aqueles que dão importância ao coração estão próximos do mundo animal, do incontrolado, e que aqueles que dão importância à razão se dedicam às reflexões mais elevadas. E se as coisas não fossem assim, se fosse exactamente o contrário? Se fosse esse excesso de razão que subalimenta a vida?

Susanna Tamaro, "Vai aonde te leva o coração"


Yes, beyond all reason... only the Heart knows Love's season!!! :)

E, claro, o Gnomo disparata...

Rui leprechaun

(...que p'ra ele a lógica é uma batata! :))

António Chaves Ferrão disse...

A razão processa dados previamente memorizados, que constituem sempre um fragmento ínfimo de o que se passa. Somos encorajados a confiar na razão (repare-se na palavra coragem) quando a fracção da realidade incluida nos dados que processámos é suficiente para se ajustar a propósitos previamente definidos (repare-se na palavra propósitos). E, de sucesso em sucesso, a nossa confiança reforça-se. Neste sentido, a razão é, ao mesmo tempo, a condição para e o produto de uma boa engenharia. Haja espaço para tudo o resto.
O cerebelo pode cancelar todas as funções racionais num segundo. É melhor deixá-lo sossegado. Ou talvez conhecer melhor os seus ditames (ele não oferece opções) e respeitá-lo escrupulosamente (também poderíamos dizer, religiosamente).
Parabéns pelo interessantíssimo blog.

Anónimo disse...

Um dia destes ainda tenho de dar razão ao Darwin ácerca do cérebro das mulheres, por um lado, não as vejo muito por aqui a comentar, por outro, eu própria estou tão confusa que se tivesse que entrar agora numa rotunda não sei se o faria pela direita ou se punha a hipótese de o fazer pela esquerda.

guida martins

Anónimo disse...

Parece-me que a «alternativa» entre razão e desrazão, tal como a apresenta o Desidério, apenas tem relevância dentro de um conceito bastante estreito de razão e, possivelmente, esquecendo um elemento muito importante: é a própria razão que se dá conta dos seus limites. Pela razão dou-me conta de que apreendo a realidade não apenas pela inteligência, mas também pelo sentimento e pela vontade. Portanto, não é necessário mostrar a um qualquer desracionalista que está a usar a razão para a descredibilizar. A própria razão dá-se conta disso.

Alef

DUZENTOS ANOS DE AMOR

Um dia de manhã, cheguei à porta da casa da Senhora de Rênal. Temeroso e de alma semimorta, deparei com seu rosto angelical. O seu modo...