quarta-feira, 28 de março de 2007

O cientista dogmático e outras aventuras

Alguns cientistas são dogmáticos: são seres humanos. O dogmatismo, o respeito dogmático e reverencial pela autoridade e pela tradição são traços humanos gerais e comuns. É um pouco como o racismo: nascemos racistas e aprendemos a não o ser. Precisamente porque estas atitudes são tão naturais é que a filosofia só surgiu na Grécia antiga. Segundo Lloyd, em nenhuma outra civilização antiga — egípcia, indiana, chinesa — encontramos textos em que um intelectual discorde abertamente de outro:

“Podemos passar a pente fino o que chegou até nós da medicina, matemática e astronomia egípcias e babilónicas à procura, em vão, de um único exemplo de um texto no qual um autor individual se distancie explicitamente e critique a tradição por forma a reclamar originalidade, ao passo que as nossas fontes gregas o fazem repetidamente.” (G. E. R. Lloyd, The Revolutions of Wisdom, p. 153.)

Eu diria que nessas civilizações nunca houve ciência: houve apenas resultados científicos, porque não podemos viver sem eles e sem tropeçar neles, mas não houve ciência. Tal como não houve filosofia, apesar de ter havido algumas ideias filosóficas.

A atitude reverencial é natural — mas impede o fluxo de ideias. O que podemos fazer quanto a isso? Podemos divulgar melhor a importância da discussão crítica, ensinar as pessoas a discutir, dar-lhes instrumentos críticos. E podemos divulgar a diferença entre um sistema no qual se estimula e premeia a discussão crítica e um sistema no qual se premeia o respeito pelas autoridades e pela tradição. É precisamente porque as pessoas são naturalmente dogmáticas que precisamos do primeiro sistema.

O sistema de abertura crítica permite o seguinte: imaginemos que somos os dois biólogos. E eu sou um biólogo tonto, que encaro Darwin como a palavra do Senhor. O leitor é crítico e tem tendência para avaliar criticamente as coisas. Eu nunca vou pôr Darwin em causa, mas o leitor descobre um aspecto da teoria que não parece funcionar. Fica curioso. Prossegue a sua investigação. E acaba por publicar um importante trabalho numa revista da especialidade que refuta Darwin definitivamente. E fica famoso — não será excomungado nem queimado vivo. Eu poderei resistir dogmaticamente à nova teoria, mas essa será uma causa perdida — outros cientistas menos dogmáticos do que eu percebem as coisas e abandonam a teoria de Darwin. É o próprio sistema que premeia e estimula a crítica e a mudança. Precisamente por isso, as pessoas naturalmente dogmáticas e de fraco sentido crítico não fazem grande mal.

Compare-se com um sistema no qual se premeia precisamente o inverso: o respeito pela autoridade e pela tradição, a atitude reverencial. Para se ver um sistema desses em funcionamento basta ver o que se passou com Galeno:

“Apesar de Al-Razi declarar que era um discípulo de Galeno, escreveu também livros em que critica alguns dos seus ensinamentos; foi o primeiro a distinguir a varíola do sarampo. Ibn al-Nafis criticou também directamente Galeno, fazendo notar que o sangue passa pelos pulmões e não entre as cavidades do coração, como Galeno tinha afirmado. Em contraste, as obras de Galeno eram por esta altura tratadas como textos sagrados na Europa cristã e não se fazia tentativa alguma para progredir a partir delas.” (Charles Freeman, The Closing of the Western Mind, p. 331)

Os sistemas de pensamento fechados à crítica e à discussão aberta têm evidentemente tendência para ser ultrapassados pelos outros sistemas, em regimes políticos livres. Sem a protecção da força bruta, os sistemas fechados de pensamento tendem a perder partidários.

4 comentários:

Anónimo disse...

«É um pouco como o racismo: nascemos racistas e aprendemos a não o ser.»: aqui está algo altamente discutível. Mas como o artigo não é sobre isso fica para outra altura.

A afirmação de que não houve ciência ou filosofia nas civilizações referidas, contrariamente à civilização grega, carece de rigor e é uma ideia profundamente eurocentrica.
Já em relação ao exemplo da teoria, a história da ciência mostrou-nos que muitas teorias foram refutadas, e assim permaneceram durante anos, por vezes décadas, e que foi graças à insistência dos cientistas que as criaram ou desenvolveram, mesmo vendo as suas crenças abaladas, que a ciência se desenvolveu.
Temos o exemplo de Copérnico. Se Copérnico, ao ver a sua teoria refutada inúmeras vezes e sem possuir durante anos argumentos que contrariassem as refutações, simplesmente a abandonasse e contrariasse essa atitude supostamente dogmática, o prejuízo para a ciência teria sido enorme e hoje, muito provavelmente, a nossa compreensão do universo seria ainda muito debilitada. Fui buscar o exemplo mais antigo, mas certamente que outros mais recentes contrariam essa ideia de que refutada uma teoria deve ser simplesmente abandonada.

Anónimo disse...

Nascemos racistas a que propósito? Parece-me um pressuposto não-fundamentado, aliás completamente irrelevante para a tese que defende. Que também me parece excessiva (ou limitada, como quiser): se não houvesse espaço para a reflexão contraditória e para a crítica nas sociedades antigas não se percebe como é que chegámos ao século XVI e aqui. Claro, compreendo que esteja a falar de ciência, em sentido estrito. Mas a ciência é apenas um dos modos do humano, não é? (excelente modo, obviamente)
Saudações
marvl

Anónimo disse...

O Diogo afirma:
"Temos o exemplo de Copérnico. Se Copérnico, ao ver a sua teoria refutada inúmeras vezes e sem possuir durante anos argumentos que contrariassem as refutações, simplesmente a abandonasse e contrariasse essa atitude supostamente dogmática, o prejuízo para a ciência teria sido enorme e hoje, muito provavelmente, a nossa compreensão do universo seria ainda muito debilitada. Fui buscar o exemplo mais antigo, mas certamente que outros mais recentes contrariam essa ideia de que refutada uma teoria deve ser simplesmente abandonada.
"
Mas o Diogo esqueceu algo muito importante: é que para Copérnico defender a sua teoria, alguns outros morreram na fogueira. Uma teoria não é defendida por um homem hoje e amanhã aceite sem mais, sem que o dogmatismo se imponha. Quase sempre leva séculos para que uma teoria se imponha. E há ainda outro ponto interessante: em ambientes de maior liberdade política, religiosa, social. o conhecimento e o saber consegue evoluir de uma forma espantosa.
Se tiver interesse, o joão Magueijo tem no seu livro um capítulo interessante que se chama "disparate", onde explica isto de uma forma interessante. Mas tenha em atenção que Magueijo se refere às resistências dentro do próprio meio académico. As que vem de fora são bem maiores.
Abraço
Rolando Almeida

Unknown disse...

ohh Anonimo....quando o diogo se referiu a copernico...eu acho que nao era necessario vc ir tao a fundo "A fogueira", Pq sempre elas existiram, ate hj, so que de forma "justa" ou de forma errada como cadeira eletrica e medicamentos letais. Acho q diogo quis dizer que quando a ciencia se torna por completa dogmatica, ela deixa de ser ciencia...porque a parti do momento q ela descobrir tudo, ela deixa de ir atras do novo...por isso ela precisa ter duvidas...para por em pratica suas endagaçoes, contudo ela naum pode ser dogmatica e reta...ela tem de ser "subjetiva/objetiva" e flexivel, mantendo a etica. Ser queimado na fogueira naum é nada dogmatico. è ERRADO.

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